Couchsurfing num Mosteiro.
Há experiências que de um modo espontâneo e imprevisível mudam o nosso ser inesperadamente. Mudam o nosso core, o nosso fundo, a nossa visão da vida. Mudam o que valorizamos, as nossas queixas diárias, a nossa infelicidade constante por detalhes que agora vejo serem sem importância. Sou uma pessoa com sorte. Tenho acesso ao conhecimento, à cultura, à escolaridade e a oportunidades.
Vou explicar-vos então o que me aconteceu e me marcou tanto. Era uma vez duas meninas que queriam muito fazer couchsurfing na Birmânia e conhecer de perto pessoas que respiram todos os dias o ar deste país. Nas grandes cidades onde iríamos passar mais tempo existiam alguns perfis nesta rede social mas não muitos quando comparamos com outros países. Contactámos todos os que tinham reviews. Todos nos recusaram a dormida. Lemos que na Birmânia não era permitido que os turistas ficassem em casas particulares e que legalmente deveríamos pernoitar sempre num hotel. Algumas respostas de couchsurfers explicavam esta questão. Não ficámos contentes com este desfecho. Decidimos arriscar na aleatoriedade. Procurámos couchsurfers no país inteiro. Em 676.578 km² certamente alguém nos iria receber. Se alguém nos respondesse positivamente alteraríamos os planos de viagem e tentaríamos passar por lá. Assim foi. Um monge chamado Uvi Seitta acedeu a receber-nos no seu mosteiro e decidimos fazer o desvio para conhecer esta realidade e descobrir Meiktila.
Meiktila fica no caminho entre Bagan e Inle Lake, dois dos destinos mais turísticos da Birmânia. Não foi fácil fazer este desvio. Perguntámos no nosso hostel (Winner Guest House) como poderíamos ir de Bagan a Meiktila. A resposta do senhor foi algo como “O que é que vão fazer lá? Não tem nada interessante para ver. Vão antes para Inle Lake! Estão aqui os horários”. Tentámos explicar que obviamente que iríamos a Inle Lake mas que antes gostaríamos de visitar uma pessoa em Meiktila mas não nos ajudaram a entender como chegar lá.
Ainda nos faltava visitar um dos sítios mais sagrados na Birmânia, o Mont Popa e pelo mapa compreendemos que ficava no caminho para Meiktila. Do hostel partiam umas excursões de uma manhã, numas carrinhas com ar condicionado que recolhiam os turistas nos vários hotéis. Perguntámos se poderíamos ir mas não pagar a totalidade dos 10000 kyats (cerca de 7,5€) porque a nossa intenção era seguir e não voltar a Bagan. Disseram que não podia ser. Decidimos imiscuir-nos com os locais. Chegaríamos certamente lá de transportes públicos de algum modo. Lemos no Lonely Planet que do mercado de Nyaung-U partiam umas pickups às 8h30 para o Mont Popa por 3000 kyats (cerca de 2,3€). Na verdade foram 4000 kyats. Arriscámos e foi uma das experiências onde nos envolvemos por completo na comunidade. A pickup de bancos de madeira foi enchendo e a nossa presença fazia-se notar. Embora não falassem inglês, a vontade de comunicar connosco era maior. Fizeram-nos penteados iguais aos seus e acolheram-nos com os já habituais mil sorrisos. A certa altura, passou por nós a carrinha com ar condicionado com os turistas que fotografavam a nossa pickup devido ao facto de estar estar sobrelotada. Filmei-os também. Para ver o comportamento de quem vai pelo caminho mais fácil e lembrar-me sempre que não quero fazê-lo. Em Kyaukpadaung trocámos de pickup e pagámos mais 1000 kyats.
O Mont Popa é maravilhoso. Cuidado com os macacos! Roubam tudo! Deixámos as nossas mochilas onde se deve guardar os sapatos e subimos as 777 escadas. A minha péssima forma física fez-me chegar ao topo a ofegar. Este local é muito espiritual. Eu que não tenho muito presente a religião na minha vida, senti-me mesmo bem por ali e com vontade de olhar o horizonte e repensar muitos momentos. Antes de ser atacada por um macaco que me quis roubar a água.
Após esta dose de paz na nossa caminhada era altura de descobrir como chegar a Meiktila. Apanhámos uma pickup até Kyaukpadaung onde tivemos uma inquilina diferente. Uma mota. Passámos grande parte do tempo a achar que a mota nos ia cair em cima. Chegadas a Kyaukpadaung apanhámos uma mini van que nos levou a Meiktila e nos deixou mesmo à porta do mosteiro.
Era altura de conhecer o Uvi. Quando chegámos, percebemos que muita gente nos esperava. Alguns estudantes que desejavam conhecer-nos, saber mais sobre o nosso país e assim, através da comunicação, melhorar o seu inglês. O Uvi é um monge e com ele aprendemos um pouco sobre a sua vida, a sua entrega, o viver da dádiva e repensámos a simplicidade e humildade. Penso que a palavra hospitalidade deve ter nascido em Meiktila. Todos foram uns anfitriões extraordinários. Trataram-nos muito bem e pensaram na nossa estadia ao detalhe.
Visitámos a escola onde estudavam inglês onde falámos um pouco sobre nós, Portugal, o que fazíamos e o que nos tinha impelido a visitar a Birmânia. Queriam muito saber sobre o nosso sistema de educação, política e trabalho. Explicámos um pouco da nossa cultura e espalhámos um pouco do que é ser português por terras birmanesas. A maioria das pessoas não fazia ideia onde ficava o nosso país e fez-me feliz poder falar da minha terra e apresentá-la publicamente.
Visitámos uma escola para meninos invisuais onde aprendemos um pouco mais sobre Braille e tivemos oportunidade de ajudar a associação. A mim, marcou-me muito ver as condições rudimentares da escola e gostaria de poder fazer muito mais. Não tirei fotos porque senti que não era justo marcar em fotos pessoas que não têm o poder de ver.
Passeámos à noite por Meiktila. Andámos em aventuras a passar pontes de madeira no rio onde podia passar o comboio a qualquer momento. Vimos a pagoda em forma de Karaweik, um pássaro mítico, a Phaung Daw U que tem quadros com os 16 sonhos do Rei Korsala. Passeámos no mercado e ao longo do lago. Empurrámos uma ambulância antiga com a esperança que esta funcionasse. Puseram-nos Thanaka na cara para proteger do sol. Foi uma experiência muito rica culturalmente. Muito natural, muito verdadeira.
No mosteiro dormimos no quarto do Uvi e embora no chão, não nos custou nada. Conhecemos um rapaz da Polónia que tal como nós, estava lá a fazer couchsurfing e seguiu viagem connosco para Inle Lake. O Uvi cozinhou para nós comida típica, falou-nos sobre o seu estilo de vida e ensinou-nos sobre o seu país. Nos dias que estive por lá, tudo foi simples e genuíno. Uma tranquilidade inexplicável. Sou pouco adepta de voltar onde fui feliz mas gostava mesmo de voltar a este mosteiro e aprofundar a experiência que tive nestes dias. Brevemente vou editar os vídeos que fiz por lá. 🙂
Nas vossas viagens, arrisquem estar mais perto das pessoas. Conhecem-nas. Façam amigos para a vida. Amei esta aventura. Amei!
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